Numa altura em que as tensões raciais continuam na ordem do dia – basta lembrar a edição deste ano dos Óscares de Hollywood – trazemos-lhe um testemunho que vai contra a corrente. Venus Williams, nove vezes campeã de torneios do Grand Slam, anunciou esta semana que voltará a Indian Wells, 15 anos depois da sua última aparição no oásis californiano.
A norte-americana não disputa o torneio desde 2001, ano em que desistiu do encontro das meias-finais frente a Serena, devido a uma lesão no joelho. Serena, na altura apenas com 19 anos, seria vaiada durante a final, num encontro que ficou ainda marcado por insultos racistas vindos das bancadas. As duas irmãs prometeram então não mais voltarem a Indian Wells, mas o gesto de Serena Williams no ano passado, pondo fim ao boicote ao torneio californiano, fez Venus Williams mudar de ideias. Como dizia Nelson Mandela, “tudo parece impossível até que seja feito”, e Venus resolveu contar tudo numa carta enviada ao The Players Tribune.
“Há qualquer coisa sobre ser-se a irmã mais velha.
Quando tu és a irmã mais velha, tu és a primeira – sempre, sempre primeira.
Às vezes, é uma vantagem. Ser a irmã mais velha significa que tu és a primeira a tirar a carta. Significa que és a primeira a sair à noite para namorar. És a primeira a quem é permitido ficar acordada até tarde, ou a ficar em casa sozinha.
Significa que és a primeira a crescer.
No caso da minha família, isso também significou que eu fui a primeira a tornar-me tenista profissional. A primeira a participar num torneio oficial WTA. A primeira a jogar contra uma número 1. A primeira a bater uma jogadora do top 10, a jogar nos Grand Slams, a chegar à final de um Grand Slam.
E, claro, isso significou que fui a primeira a tornar-me famosa.
Fui a primeira sobre quem se escreveram artigos. A primeira a quem pediram autógrafos. A primeira sobre quem realizaram programas de televisão, a receber prémios, e a ter calçado com o meu nome.
Eu fui a primeira a ser conhecida apenas pelo meu primeiro nome.
Venus. Apenas Venus.
Eu era a irmã mais velha. Eu tinha de ser a primeira.
Eu tenho orgulho nisso.
Às vezes, porém, ser a irmã mais velha é uma responsabilidade.
Para mim, ser a irmã mais velha significou que, quando me tornei jogadora profissional, eu era a única jogadora no circuito que se parecia comigo. Eu era a única jogadora com a minha cor de pele, com o meu cabelo, com a minha história, com o meu estilo.
Sendo a irmã mais velha significou que, quando me tornei número 1 do mundo em 2002, eu não era apenas a número 1 do mundo. Eu era também a primeira mulher negra norte-americana a chegar a número 1. E isso implicava carregar comigo a importância do que eu tinha alcançado. E eu senti-me honrada por fazê-lo.
Ser a irmã mais velha significou que, quando a minha irmã mais nova se estreou profissionalmente, eu tornei-me em muitas coisas diferentes para ela – colega, adversária, parceira de negócios, colega de pares. Mas eu era ainda, e antes de mais nada, a única coisa que sempre tinha sido: a sua família. Eu era a sua protectora – a sua primeira linha de defesa contra as forças externas. E eu acarinhei isso.
Ser a irmã mais velha… eu não assumi essa responsabilidade de ânimo leve. Eu sabia aquilo por que ela estava a passar – estrear-se como tenista profissional, crescer em frente das câmaras, entrar na vida pública como uma jovem adolescente negra – e eu sabia o quão difícil isso poderia ser. E eu sabia o quanto eu teria gostado de ter tido uma irmã mais velha no circuito durante o meu primeiro ano, e quanto orgulho eu senti por saber que a minha irmã tinha-me a mim.
Serena sempre me teve.
Mas eu nunca tive de lho dizer. Ser a irmã mais velha significa que nada tem que ser dito em voz alta. É implícito, e compreendido:
Tu consegues. Eu fi-lo, por isso tu também consegues. Basta seguires o meu exemplo.
Ser a irmã mais velha significa que tu não te limitas a abrir o caminho.
Tu mostras o caminho.
Acima de tudo, ser a irmã mais velha é um vínculo. E um vínculo não conhece idade, nem direção; não se define por quem é mais velho, ou mais novo, ou por quem tem que responsabilidades, ou que vantagens. Um vínculo nunca é sobre quem é o primeiro.
Um vínculo é sobre a força.
Ser a irmã mais velha de alguém significa ser forte para eles.
E por vezes, “ser forte” significa, sim, ser forte. Mas outras vezes – na maioria das vezes – significa apenas estar lá. Significa estar lá quando é preciso, custe o que custar.
E isso – acima de tudo o resto – é o que ser irmã mais velha significa para mim.
Significa estar lá.
Significa estar lá pela Serena.
Quando a Serena decidiu jogar em Indian Wells no ano passado, eu fiquei tão orgulhosa dela. Ela não tinha pisado os courts do torneio desde 2001 – nenhuma de nós o tinha feito.
A Serena contou-me que o que motivou a sua decisão foi um livro que lera sobre Nelson Mandela. Ela aprendera com ele, pensara nele – reflectindo sobre o seu percurso e os seus princípios.
Sobre perdão.
Quando a Serena se apaixona por qualquer coisa, os seus olhos brilham. E eu percebi imediatamente que a aprendizagem sobre Nelson Mandela era qualquer coisa que ela estava a levar bastante a sério. Por isso não me surpreendeu, de todo, quando pouco tempo depois, ela sugeriu que talvez esta fosse uma oportunidade única para ela em Indian Wells – para não se limitar a extrair lições das experiências de Nelson Mandela, mas a aplicar aquilo que tinha aprendido.
Eu estava orgulhosa da Serena por tantas razões: pelo bom senso com que abordou a nossa história complicada em Indian Wells; por ter assumido a sua decisão com tanta convicção; por tê-la transmitido com tanta elegância e clareza; e claro, por jogar com a mesma elegância e clareza.
E eu sabia que eu iria lá pela Serena, independentemente das circunstâncias – por que isso é o que as irmãs mais velhas fazem. Elas estão lá.
Eu vi-a jogar e torci por ela.
E eu fiquei tão, mas tão orgulhosa.
Mas como orgulhosa que sou, a verdade é, os meus sentimentos não tinham mudado: eu não achei que voltar a jogar em Indian Wells fosse uma coisa que eu voltasse algum dia a fazer.
Em court, Serena é muito mais emotiva do que eu – e toda a gente vê muito mais o seu lado competitivo do que vê o meu. Mas isso não significa que eu não seja emotiva, e isso não significa que eu não seja competitiva. Eu acho que sou apenas… instintivamente mais calma. Não o faço conscientemente. É apenas a minha maneira de ser.
E honestamente, à minha maneira, poderei ser mesmo a mais competitiva das duas. Eu acho que a capacidade da Serena de pôr tudo cá para fora no court lhe permite gerir as suas emoções mais facilmente. Para mim, contudo, é um processo mais difícil. Ser menos expansiva faz com que divague nos meus pensamentos. E quando eu me sinto de uma determinada maneira sobre qualquer coisa, a minha competitividade pode fazer com que demore mais tempo para mudar de opinião.
E foi isso que aconteceu comigo em Indian Wells.
Por um lado, as minhas recordações do que se havia passado em 2001 ainda estavam bastante presentes.
Eu lembro-me do meu encontro dos quartos-de-final, contra a Elena Dementieva, como se fosse ontem: 6-0 6-3, uma excelente vitória sobre uma excelente jogadora. Eu lembro-me das dores no meu joelho, e do quanto eu queria ter jogado nas meias-finais frente à Serena – antes de ter por fim aceite que não seria capaz do fazer. Eu lembro-me das acusações contra mim e contra a minha irmã e contra o nosso pai. Eu lembro-me da reacção do público, quando me dirigia para o meu lugar, durante o encontro da Serena na final do torneio.
Há certas coisas que, se passas por elas a uma certa idade, tu simplesmente não consegues esquecê-las.
Mas por outro lado, quando agora penso no que aconteceu, todos estes anos depois – são menos as recordações do que aconteceu e mais aquelas do como eu me senti quando aconteceram, que guardei comigo.
Eu lembro-me do quão magoada me senti. Lembro-me da minha confusão e da decepção e da raiva. Lembro-me de como a cobertura noticiosa do acontecimento na altura não pareceu preocupada comigo ou com a Serena, enquanto pessoas, de todo – mas apenas com a história por si só. E com a versão da história que atrairia mais atenção mediática, independentemente da verdade. Eu lembro-me de me sentir injustiçada, e de não ter feito nada de errado. Lembro-me de sentir que tinha injustamente ficado com o ónus da culpa por uma situação grave.
E lembro-me de deixar Indian Wells em 2001 com o sentimento de que eu não era bem-vinda lá.
Sentir que não se é bem-vindo num lugar é uma memória difícil de apagar – em qualquer idade. Aos 20? É praticamente impossível. E portanto foi o que eu fiz. Agarrei-me a ela.
Mas depois vi a Serena.
E foi nesse momento, vendo a Serena ser recebida de braços abertos no ano passado em Indian Wells, que eu acho que percebi verdadeiramente o que ser a irmã mais velha significa.
Significa que, para todas as coisas que eu fiz primeiro, e por todas as vezes que abri caminho para a Serena, a coisa de que me posso mais orgulhar foi do que aconteceu desta vez.
Quando Serena abriu caminho para mim.
Eu irei jogar em Indian Wells este ano – 15 anos depois da minha última presença, e um ano depois da Serena o ter feito. À medida que o sorteio se aproxima, estou cada vez mais ansiosa por fazê-lo. Estou ansiosa por competir contra as melhores jogadoras do circuito. E estou ansiosa pelos fãs – eles que desempenharam um papel tão importante fazendo do ano passado um ano tão especial.
Mas acima de tudo, eu estou ansiosa por jogar ténis.
Parece simples – eu sei. Mas depois de quase 30 anos a jogar este desporto, eu aprendi uma coisa. Eu aprendi que, não importa o que aconteça, ou o que tenha acontecido… ou onde estás, ou por onde andaste… no final do dia: ténis é ténis. É sempre, sempre ténis. E não há nada melhor.
Quem me ensinou isso?
Por acaso, é uma história engraçada – foi a melhor jogadora do mundo.
Eu sou a sua irmã mais velha.”
(Pode ler a versão original, em inglês, aqui.)













