Esplendor na Relva | “Nick e os Abutres”, por Miguel Seabra

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O encontro mais aguardado da Manic Monday defraudou as expectativas. Mas é sempre divertido ver os abutres dos tablóides à volta de Nick Kyrgios.

 Miguel Seabra, em Wimbledon [clique aqui para ler todos os artigos publicados pelo autor no Ténis Portugal]

Farto-me de rir quando, em Portugal, se fala do Correio da Manhã como entidade maléfica. É verdade que o Correio da Manhã já não é o mesmo Correio da Manhã fundado por Carlos Barbosa e que tanto fez pelo ténis português (ao patrocinar eventos tenísticos e apoiar enviados-especiais a torneios por esse mundo fora; escrevi mais de mil textos para o jornal!), mas é preciso ter a noção de que, mesmo com o seu sensacionalismo reforçado nos dias que correm, ainda faz figura de menino de coro diante de outros tabloides de países alegadamente mais civilizados do que o nosso – como o The Sun em Inglaterra ou o Das Bild na Alemanha.

Em Inglaterra, os tabloides contribuem muito para o ambiente típico que se vive durante Wimbledon. Arranjam sempre histórias espatafúrdias e em muitos casos até são eles a criar artificialmente os escândalos – como o da garbosa moçoila que trabalhava no restaurante de imprensa e que saltou praticamente nua para o Centre Court antes da final entre Richard Krajicek e MaliVai Washington, há 20 anos, correndo de um lado ao outro do campo e levantando o avental quando passou pelos protagonistas. Claro que um dos tabloides no dia seguinte tinha as melhores fotografias: estava tudo combinado…

Wimbledon e os seus protagonistas surgem sempre destacados nos tablóides com o recurso às mais imaginativas e mirabolantes artimanhas, sobretudo nos tempos em que – não havendo tecto no Centre Court – havia jornadas tão chuvosas que não sobrava nada de especial para contar no plano competitivo. Recordo-me de alguns exemplos célebres de outros tempos: as frases ‘You Can Not Be Serious’, ‘You Are The Pits of The World’ e ‘Chalk Flew Up’ de John McEnroe em 1981 foram imortalizadas pelos tabloides; em 1993, o habitualmente plácido Pete Sampras virou-se para o público após a vitória sobre um britânico de segunda linha e disse «Thank you very much, hasta la vista»; no dia seguinte, um escaparate apregoava que ele tinha vociferado «Take that, you motherfuckers»! Talvez quem mais sofreu com a imprensa sensacionalista tenha sido Martina Navratilova, que teve parangonas do género ‘Pecado e Sexo Selvagem com Martina’ ou ‘O Que Se Passava No Seu Ninho Lésbico’; a checo-americana chegou a dizer que «os tablóides quase me mataram; as mentiras que inventaram a meu respeito!». Em 1998, a moda foi tirar fotografias às partes íntimas das jogadoras e revelar a celulite; recordo-me de que nesse mesmo ano, com o Campeonato do Mundo de Futebol a decorrer em simultâneo, David Beckham foi transformado em bode expiatório de uma nação devido à sua infantil expulsão no encontro com a Argentina – e que, no dia seguinte, o tablóide The Sport escarrapachou Victoria Adams (a Spice Girl que é noiva do jogador do Manchester United) em topless na primeira página com o seguinte título: ‘Querida Posh Spice: Nunca Mais Mostres as Tuas Mamas ao Beckham’. Nessa altura andavam obcecados em tirar fotografias à roupa interior da ninfeta Anna Kournikova e realçar certas partes da sua anatomia com legendas do tipo «Anna e as suas Nikovas»…

Confesso que, em 2006, dei uma dica a um colega do The Sun que lhe permitiu fazer uma página inteira com Maria Sharapova e Cristiano Ronaldo (contei-lhe que um amigo a tinha apanhado nos bastidores a ver os penáltis do Mundial contra a Inglaterra e beijou o crucifixo quando Cristiano Ronaldo foi marcar o decisivo, dizendo “Good luck, my friend”) e que, em 2007, quase vendi ao mesmo The Sun a informação privilegiada de que Roger Federer tinha ido receber o troféu de campeão com as calças do fato de treino ao contrário, mas acabei por ter escrúpulos (já agora, teria ganho 500 libras pela dica – e, curiosamente, quando contei a história ao Roger Federer ele disse-me que deveria ter aproveitado!).

Depois de tantos anos, já perdi o hábito salutar de ver diariamente os tablóides e de me rir com os títulos durante a quinzena de Wimbledon. Porque é preciso isso mesmo: ter sentido de humor, que é algo que falta em Portugal na relação com os tablóides (ou o tablóide, já que o 24 Horas deixou de existir há uns bons anitos), e também ter a noção de que jornais como o Correio da Manhã, o Das Bild ou o The Sun acabam por ser importantes para a democracia porque, para além de todo o lixo, também fazem um notável trabalho de pesquisa jornalística que mantém a classe política no sentido e nos revela muitos dos seus podres.

É claro que, em ambiente desportivo, os casos são bem menos graves. Este ano, aqui em Wimbledon, Novak Djokovic revelou após a sua primeira ronda que não havia ponta de verdade na notícia que assegurava que ele tinha deixado de ir de bicicleta para o clube devido a uma colisão que o deixou com medo de continuar a optar por esse meio de transporte. E o grande alvo dos tablóides foi, sem qualquer dúvida, Nick Kyrgios; fui a todas as suas conferências de imprensa só para apreciar as insistentes perguntas dos repórteres sensacionalistas e o modo como o australiano lidava com elas – às vezes lidou bem, outras nem tanto, por vezes gozou com os interlocutores, outras vezes tentou esforçar-se em dar respostas mais elaboradas. A fama de bad boy precede-o devido a vários episódios bem conhecidos e os repórteres dos tabloides são autênticos cães-de-fila, sabem picar até provocar uma reacção ou uma tirada que lhes dará o título ideal ou lhes permita compor uma notícia mais apimentada.

Nick Kyrgios perdeu nesta segunda-feira, a Manic Monday que é considerada a melhor jornada de ténis do ano (já que todos os oitavos-de-final masculinos e femininos são jogados num único dia, caso único no âmbito do Grand Slam); esperava-se que o seu compromisso diante de Andy Murray atingisse os píncaros em termos exibicionais e dramáticos, mas o australiano acabou por ser presa fácil diante de um opositor incrivelmente sóbrio e pragmático. Depois de perder o primeiro set na ponta final, Nick Kyrgios perdeu a cabeça na segunda partida e só regressou ao encontro no terceiro set. Não foi suficiente; sucumbiu por 7-5, 6-1 e 6-4.

A toada na conferência de imprensa andou sobretudo à volta do seu empenho, do facto de não ter treinador, de gostar ou não de ténis, de estar a desperdiçar o seu talento, de ter estado antes a ver o encontro de pares de Lleyton Hewitt em vez de se estar a preparar para o duelo com Andy Murray. A certa altura ainda perdeu a paciência e respondeu “isso é uma pergunta diabólica”, mas aguentou-se bem, perante o olhar atento do seu agente John Morris, sentado num canto da sala. Tanto Dustin Brown como Andy Murray tinham dito anteriormente à imprensa para deixarem o jovem australiano ser como ele deseja ser. Veremos se num futuro próximo Nick Kyrgios desejará ser ainda melhor do que é num court de ténis para corresponder às expectativas geradas pelo seu tremendo talento; e com os tablóides a perderem o seu alvo favorito, veremos também para que lado se irão virar a partir de amanhã…

About Author

Miguel Seabra é jornalista de ténis desde 1990 e comentador de ténis no Eurosport desde 2003. Foi editor das publicações Ténis Europeu, Jornal do Ténis e ProTénis. Foi campeão nacional universitário de ténis, treinador e árbitro internacional. É igualmente jornalista especializado em relojoaria mecânica, sendo editor da revista Espiral do Tempo. Assegura que não há nada melhor do que ter as suas paixões por profissão.

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