Treinar com um campeão. Uma carta desde Wimbledon

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Já está farto das discussões sobre os gritos das jogadoras durante os encontros? Com certeza não será o único. Esta semana, por exemplo, Vitoria Azarenka, quando questionada pelos jornalistas sobre os “gritos” durante o encontro dos quartos-de-final que opôs a bielorussa a Serena Williams, disse que havia chegado o momento de deitar isto para trás das costas. Nós concordamos.

E por isso trazemos-lhe o exemplo de Duck Hee Lee, um jovem sul-coreano que tem brilhado no circuito júnior. Esta é a história de um dia na vida de Lee, em Wimbledon, ele que nunca ouviu o som duma bola quando esta bate na raquete ou uma chamada tardia de bola fora. Lee nasceu surdo mas isso nunca o impediu de perseguir o seu sonho: ser o próximo Roger Federer.

“Olá! Eu chamo-me Duck Hee Lee, tenho 17 anos e sou Sul Coreano. Aos 14 anos consegui o meu primeiro ponto ATP e consegui ser o jogador mais jovem do mundo a ter ranking. Nasci surdo mas sempre dei ouvidos ao meu coração e estou a cumprir o sonho de ser tenista.

Estive em Wimbledon a disputar o quadro de júniores. Perdi na terceira ronda mas levo comigo uma experiência que quero partilhar. Treinei com o Novak Djokovic dois dias consecutivos e vou contar-vos como correu essa bonita experiência.

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No primeiro dia só treinamos meia hora, das 10:30 às 11:00, porque Djokovic tinha que completar o quinto set do encontro frente ao Kevin Anderson. Disse-lhe: “Obrigada por treinares comigo” e ele olhou-me nos olhos e respondeu-me: “Eu é que te agradeço por vires”, enquanto apertava os ténis para começar a treinar.

Trouxe apenas duas raquetes recém encordoadas e nove bolas novas para treinar. Começamos em meio court e pouco a pouco fomos recuando. Antes Djokovic tinha estado a aquecer no ginásio com o seu preparador físico e feito também alongamentos pelas 10:00.

Depois de trocarmos umas vinte bolas, decidiu mudar e jogar com bolas novas. As bolas quem as atira é sempre Boris Becker. Djokovic estava muito sério e concentrado porque em jogo estava o apuramento para os quartos-de-final num set apenas.

Tive o privilégio de treinar com Nadal em várias ocasiões e a verdade é que Djokovic treina a um ritmo elevado mas não tão alto como Rafa, que tem uma maior intensidade desde a primeira pancada. Quando Nole falha segue-se uma rotina de 10 segundos antes que Boris lhe atire a bola seguinte e que consiste em olhar para baixo, calar-se e concentrar-se para a bola seguinte.

Depois de uns 10 minutos de aquecimento, mudámos de lado e ele também mudou de raquete para continuar a jogar com a mesma tensão. Djokovic sobe à rede e faz um volley longo. Subo eu e ele sempre que pode não hesita e passa-me à rede com um passing shot.

Finalmente, termina a sua rotina de aquecimento com o serviço. Aborrece-o que haja movimento no court de maneira que todos estão quietos e ele toma o seu tempo para servir. Serve sempre igual. No lado das ‘vantagens nulas’ serve primeiro para o ‘T’, depois ao corpo e termina com o serviço aberto. No lado das ‘vantagens’, primeiro aberto, depois ao corpo e termina com o serviço no ‘T’.

Na minha vez de servir pede-me que fala o mesmo. Tenho que servir como ele e se não lhe agrada, diz-me que sirva uma vez mais na direcção que precisa.

Terminada a experiência,  nós cumprimentamo-lo, a ele e à sua equipa, e trocamos votos de boa sorte entre nós. Ao sair do court, entrava Kevin Anderson que me pediu se podia aquecer com ele. Tive que lhe dizer que não, que lamentava mas que tinha um encontro e que tinha que olhar pelos meus interesses.

Eu sigo a minha rotina. Vou tomar banho, comer e antes de disputar o meu encontro, o meu treinador, José López, diz-me que Djokovic, que acabava de ganhar a Anderson o set que lhes faltava jogar, queria voltar a treinar-se comigo no dia seguinte.

Isso deu-me forças para encarar o meu encontro da segunda ronda  que acabei por vencer por 6-7, 7-6 e 9-7 salvando 3 match points contra.

Boris pediu-nos para aquecermos às 11:oo e tivemos que fazer algumas mudanças na nossa agenda mas valeu a pena. Entra no court Djokovic junto a Becker, dirigem-se a mim e felicitam-me pela minha vitória. “Sei que hoje mudaste a tua hora de aquecimento para estares comigo. Agradeço-te e o prazer é meu. És um miúdo que inspira muita gente e admiro que digas que não é uma desvantagem seres surdo e expliques que te podes concentrar muito melhor. Essa é a chave, disse-me.

Eu perdi e ele ganhou mas levo comigo uma grande experiência. O que aprendi é que tenho que continuar a trabalhar fisicamente, tenisticamente e mentalmente. Ainda me falta muito para chegar a ser como Nole, um número um absoluto.

Duck Hee Lee.”

(Pode ler a versão original, em espanhol, aqui.)

About Author

Natural do Porto. Formada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e atualmente a tirar o doutoramento em Ecologia Florestal na Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. Entusiasta de ténis a tempo inteiro.

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